Toma esse remedinho que passa
Passa dor de dente
Passa dor de cabeça
Só não pode passar pela cabeça que até dor de cotovelo ele
faz passar!
Silva, Piano e Hunsche realizaram uma pesquisa em 2013 nos prontuários de adolescentes entre 12 e 18 anos que passaram pelo atendimento psicoterapêutico entre os anos de 1988 e 2010 no Rio Grande do Sul em uma clínica escola. Eles identificaram um cenário crescente na medicação desses pacientes ao longo dos 12 anos anteriores, o aumento contabilizou em 44,8%, um número altíssimo para um curto período de tempo.
O que aconteceu durante esses doze anos que justifica esse
aumento? Novos remédios foram desenvolvido? Remédios mais eficientes entraram
no mercado? Eles ficaram mais baratos e por isso venderam mais? A medicina
evoluiu? Ou mudamos a maneira pela qual consumimos os remédios?
Sem dúvida tivemos um grande salto na medicina nas últimas
décadas, tendo desenvolvido tratamentos muito eficazes para o bem estar do ser
humano. Durante esse tempo, a medicina, a farmácia, a bioquímica e outras
tantas áreas se debruçaram no estudo de tratamentos cada vez mais eficazes para
as doenças, buscando aliviar dores, promover a qualidade de vida, bem como prolongar a vida das pessoas. Por outro
lado, o uso dos medicamentos passou a ocupar outros espaços em nossas vidas,
sendo consumidos para aliviar dores não-orgânicas.
Eis o motivo pelo qual escrevo este texto: propor uma
reflexão sobre a diferença entre a medicação e a medicalização.
Quando falamos em medicação, nos referimos a um tratamento
biológico, necessário para a cura de determinada doença que se manifesta no
organismo do sujeito. Um exemplo de medicação acontece quando contraímos um
vírus da dengue, ou uma infecção de garganta. Nesse casos, sob a recomendação
médica, iniciamos um tratamento químico para reabilitar nossa saúde.
De forma diferente, o processo de medicalização acontece
quando passamos a fazer uso de medicamentos para curar dores não-físicas. Estou
falando do uso de remédios nos momentos em que estes fazem o papel rápido e
eficiente de fuga do real problema a ser enfrentado. Diante das mais adversas
situações da vida, o sujeito se depara com questões angustiantes e busca, com
imediatismo, sanar seus sofrimentos com comprimidos práticos e acessíveis.
Afinal, torna-se mais fácil “dormir para o dia passar logo” ou colocar a culpa
em um sintoma físico para não ser necessário falar de sentimentos de vergonha,
medo, tristeza...
Não há remédios químicos para curar relações desrespeitosas.
Não há rivotril que impeça a dor de briga entre o casal. Não há sibutramina que
faça manter os 15 quilos perdidos em uma semana. Não há relaxante muscular que
te livre do estresse após um mês cheio de frustrações no trabalho. Não há remédios
químicos para curar amores imperfeitos, palavras mal colocadas, ou a falta de
limites dos pais em relação aos seus filhos. Para isso há um processo diferente
de tomada de consciência e mudança de comportamento, que muitas vezes pode ser
facilitado com a psicoterapia.
Esquecemos que viver é também sentir tristeza, é lidar com
rejeição, é aprender a lidar com as frustrações. Esquecemos disso porque somos
cobrados a todo momento que estejamos felizes, “bem resolvidos”, bonitos e sorridentes. Precisamos refletir o
quanto o uso de medicamentos retrata uma intolerância àquilo que é diferente. Ou
seja, ao nos apresentarmos destoante daquilo que a sociedade espera (feliz,
magro, bem sucedido), estamos saindo do que é concebido como a normalidade e
devemos nos curar com o método mais rápido.
Vamos pensar... qual é o interesse de uma farmácia, ou de uma
indústria farmacêutica em vender seus remédios? Muito além de uma solução para
os seus problemas (físicos, psicológicos e sociais) o remédio é um produto, e
um produto muito lucrativo! Se toda empresa busca expandir seus negócios, com a
indústria farmacêutica não seria diferente.
Por isso que devemos nos atentar aos diagnósticos pouco
cuidadosos, bem como às nossas próprias automedicações desenfreadas e sem
orientação profissional. Essas posturas denunciam fugas em lidar com o que há
de mais incômodo em nosso jeito de ser. Mente e corpo mantêm-se conectados a
todo o momento, por isso precisamos estar também conectados a essa ideia.
(Siebert, 2014)